Por: Júlia Mente
O Brasil passa hoje por um momento em que – um ano após o golpe – os retrocessos e consequências do governo de Michel Temer são escancarados em diversos cenários. Hoje, em um contexto em que o Congresso é dominado por uma bancada conservadora e ruralista, podemos ver projetos sendo aprovados em uma velocidade extrema, que alteram direitos já conquistados e garantidos pela Constituição, violam os direitos indígenas e acordos internacionais pela proteção do clima, favorecem crimes ambientais, a grilagem de terras e promovem o aumento da violência no campo. Tais propostas já alertam para suas consequências imensuráveis ao país e a população, favorecendo apenas a expansão do agronegócio e os interesses de um pequeno grupo.
Frente a esta onda de retrocessos, foi lançado nesta terça-feira (09/05) um movimento contra as medidas absurdas que tramitam hoje no Congresso. Inicialmente, o manifesto público foi assinado por 40 instituições, entidades e organizações que atuam nas áreas ambientalistas, indigenistas, de proteção aos direitos humanos, da igreja e do campo. No entanto, em menos de 24 horas, a lista já soma mais de 105 organizações, mostrando o tamanho da indignação e da força da sociedade civil.
A denúncia e a resistência é o que une esses diferentes atores da sociedade no momento atual, em um movimento organizado. A ideia desta frente única é a atuação nacional em diferentes regiões do país, fazendo pressão em frentes parlamentares e jurídicas, além de um esforço conjunto para engajar cada vez mais a sociedade nesta luta.
“Em meio ao caos político que assola o país, a bancada do agronegócio e setores do governo federal fazem avançar, de forma organizada e em tempo recorde, um ‘pacote de maldades’ que inclui violações a direitos humanos, “normalização” do crime ambiental e promoção do caos fundiário. Se aprovadas, tais medidas produzirão um retrocesso sem precedentes em todo o sistema de proteção ambiental, de populações tradicionais e dos trabalhadores do campo, deixando o país na iminência de ver perdidas importantes conquistas da sociedade ocorridas no período democrático brasileiro.”
– Trecho da carta pública assinada por mais de cem organizações.
O “pacote da maldade”, como é chamado este conjunto de propostas lideradas pelo governo Temer e pela bancada ruralista, já estão resultando em consequências desastrosas. Os efeitos dessas reformas e do discurso de ódio incitado e reforçado por alguns integrantes do Congresso já podem ser sentidos. Nos últimos 15 dias, dois massacres chocaram o país. Um deles, em Colniza (MT), onde nove trabalhadores rurais foram brutalmente assassinados por fazendeiros. Outro no Maranhão, em que 13 indígenas do povo Gamela que lutam pela demarcação e retomada de suas terras tradicionais foram atacados por fazendeiros, resultando em feridos a tiros e dois indígenas com membros quase decepados a golpes de facão. Em ambos pôde-se observar a clara omissão do Estado, que ao invés de agir pela proteção dessas populações, acaba favorecendo os grandes latifundiários e líderes do agronegócio. E com o cenário atual, os conflitos e a tensão só tendem a aumentar nas áreas de expansão de fronteiras, onde se encontram as forças violentas do agronegócio, da mineração, das madeireiras e dos projetos de grandes obras de infra-estrutura.
Além disso, muitas das medidas propostas, como a redução das áreas de proteção ambiental, passam por cima dos esforços feitos para diminuir o desmatamento na Amazônia nos últimos anos. O ano de 2016 apresentou um aumento do desmatamento, contrariando a redução de 80% feita entre os anos de 2004 e 2018. Esses retrocessos também tem distanciado o país de acordos e comitês internacionais de direitos humanos e do clima, como foi o caso da recente avaliação do país no Comitê de Direitos Humanos da ONU.
Os ataques aos direitos socioambientais não são recentes, mas ganham força com o domínio da bancada ruralista dentro do Congresso. O governo de Temer favorece esta bancada e enfraquece os sistemas de proteção ambiental e dos direitos humanos, como é o exemplo dos cortes no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, o desmonte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a recente nomeação de um general do exército para presidir o órgão, e a criação de uma CPI da FUNAI-Incra dominada pelos interesses ruralistas, que visa investigar mais de 50 pessoas que atuam na defesa dos direitos indígenas.
Para Márcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, a união das diferentes organizações ajuda a denunciar o alcance e o tamanho do estrago dos retrocessos que estão à mesa. Além disso, é também uma demonstração de força da sociedade civil: “O Congresso e o governo se afastaram do interesse comum e legislam em causa própria e para grupos de interesse. Se da porta pra dentro dos salões do poder eles não nos ouvem e nem nos representam, estamos nos unindo para denunciar o que está acontecendo e resistir, para não deixar que governem contra o país”.
A sociedade se une em um momento extremamente necessário, uma vez que essas mudanças poderão resultar em maiores desigualdades sociais, no aumento da concentração de terras, no desmatamento, na expansão do agronegócio e da grilagem de terras, e em maiores conflitos tanto no campo como nas terras indígenas, afastando o Brasil de todos os direitos já assegurados e dos compromissos internacionais assinados.
Leia abaixo a carta na íntegra:
GOVERNO E RURALISTAS SE UNEM CONTRA O FUTURO DO PAÍS
Nos últimos anos, as agendas socioambiental, de direitos humanos e de trabalhadores do campo têm sido alvo de ataques sistemáticos por grupos de interesse instalados no Congresso Nacional e no Executivo Federal. Nem mesmo direitos garantidos pela Constituição estão a salvo.
Atualmente estes ataques ganharam uma nova dimensão. Em meio ao caos político que assola o país, a bancada do agronegócio e o núcleo central do governo federal fazem avançar, de forma organizada e em tempo recorde, um pacote de medidas que inclui violações a direitos humanos, “normalização” do crime ambiental e promoção do caos fundiário. Se aprovadas, tais medidas produzirão um retrocesso sem precedentes em todo o sistema de proteção ambiental, de populações tradicionais e dos trabalhadores do campo, deixando o país na iminência de ver perdidas importantes conquistas da sociedade ocorridas no período democrático brasileiro.
Às tentativas de aniquilação das políticas de reforma agrária e do uso social da terra, contidas na Medida Provisória (MP) 759, somam-se iniciativas de extinção de Unidades de Conservação, a facilitação e legalização da grilagem de terras e os ataques contra direitos e territórios indígenas. Em conjunto, tais investidas buscam disponibilizar estoques de terras para exploração desenfreada e também para serem negociadas através do projeto que libera a venda de terras para estrangeiros
A lista de retrocessos segue com as tentativas de enfraquecimento do licenciamento ambiental e da fiscalização sobre a mineração; a liberação do uso e registro de agrotóxicos, inclusive daqueles proibidos em diversos países do mundo; a ocupação de terras públicas de alto valor ambiental; a concretização das anistias a crimes ambientais e o ataque a direitos trabalhistas e sociais de populações camponesas e de trabalhadores rurais
Para o avanço rápido desta agenda, governo e parlamentares armam tramitações expressas no Congresso e fazem uso desmedido de medidas provisórias, inclusive para temas que já se encontram em debate no legislativo, excluindo assim a possibilidade da participação da sociedade e de estudiosos dos temas.
Além de colocar em risco a nossa própria soberania e segurança alimentar, a aprovação de tais medidas resultará em maior concentração fundiária; na inviabilidade econômica de pequenos produtores rurais e da agricultura familiar, dos quilombolas e povos indígenas; no aumento da violência e da disputa por terras; no beneficiamento da grilagem de terras públicas e na mercantilização dos assentamentos rurais e da reforma agrária.
O desmatamento será impulsionado de forma decisiva, colocando por terra todo o esforço da sociedade que levou à redução do desmatamento na Amazônia em cerca de 80% entre os anos de 2004-2014, nos afastando do cumprimento de compromissos internacionais assumidos em convenções sobre clima e sobre biodiversidade, de direitos indígenas e direitos humanos. Este conjunto de fatores poderá potencializar as dinâmicas das mudanças climáticas, impondo graves prejuízos à economia, aos produtores rurais e à toda população do campo e das cidades.
A participação do governo na ofensiva orquestrada contra os direitos, territórios da diversidade e meio ambiente revela um retrocesso político histórico: além da renúncia à obrigação constitucional de tutela dos direitos difusos e de minorias, escancara uma concepção de País calcada no desprezo pela natureza e pelo conhecimento sobre ela em função de interesses econômicos imediatos, reproduzindo o modelo excludente de expansão do agronegócio e facilitando a implementação de projetos frequentemente ligados a esquemas de corrupção e má-gestão dos recursos públicos.
Diante do exposto, as organizações e movimentos dos mais diversos campos de atuação abaixo assinados se unem para denunciar e resistir à perversa agenda de desmonte das conquistas socioambientais, e convidam a população e demais setores organizados da sociedade a somarem esforços no sentido de impedir tais retrocessos.