Por: Magalli Lima
Fotos: Carolina Piai
Uma marcha que terminou num cenário um tanto quanto reflexivo para o movimento negro de São Paulo, em que um corpo de balé – formado quase unicamente por crianças brancas – dançava ao som da bateria da escola de samba Acadêmicos do Tatuapé (formado por integrantes negros, mas sem destaque para seus corpos). Em dado momento uma música que falava sobre o continente africano foi dançada por essas crianças, que foram prontamente aplaudidas por muitos do público a encarar aquela apresentação como parte do ato do dia 20 de novembro.
Seja por certa falta de orientação dos organizadores da 14ª Marcha da Consciência Negra, ou por pura simpatia ao samba, o fechamento do ato daquela noite de segunda-feira (20) foi simbólico. Naquele dia, muitos negros e negras terminaram um ato político racial em frente ao Theatro Municipal, no Centro de São Paulo (como é feito todos os anos), e tiveram de ‘engolir’ a apresentação cultural iniciada pelo protagonismo branco – já que o Theatro instalou um palco externo que iniciou atividades logo após o fechamento do ato, como se a atividade também fizesse parte da Marcha.
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Em outro cenário, e um pouco mais tarde, o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB-SP), recebia o troféu Raça Negra, na Sala São Paulo – cerimônia que premia personalidades negras e não negras por ações de valorização dos direitos do povo preto. Sim, o mesmo prefeito que não deixou que o carro de som da Marcha levasse a multidão pela avenida Paulista. E, ainda, o mesmo prefeito que desativou a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial ao assumir a gestão. O prefeito, aliás, nem compareceu a cerimônia para o recebimento do troféu.
Diante de tudo isso, a grande imprensa noticiou basicamente que a Marcha foi pacífica e teve alguns impasses com o carro de som. Nenhuma abordagem profunda sobre o porquê do real impedimento do carro, ou sobre as apresentações culturais realizadas no palco em frente ao Teatro Municipal.
Uma das lições que ficam após a 14ª Marcha da Consciência Negra é essa certa passividade do público negro diante de situações que dizem muito sobre como o poder público ainda encara seus cidadãos negros e negras.
A 14ª Marcha da Consciência Negra teve início com a concentração do público às 13h, pelas calçadas do Masp, na avenida Paulista. Por volta das 14h30 o local já chamava atenção pela quantidade de pessoas, com muitos jovens e algumas figuras públicas bastante conhecidas, como Leci Brandão, Seu Jorge e Ailton Graça mesclando-se por entre o público e apoiando a luta da Marcha que, neste ano, discorreu muito sobre a importância dos negros nos espaços de poder; e a realização de projetos do povo negro para o povo negro.
Ainda cedo, militantes anunciaram o impedimento do carro de som por parte da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e da Polícia Militar. Dessa forma, o carro não poderia ser usado na Avenida Paulista para a condução do público, apenas da rua Consolação em diante. O fato embasbacou militantes e público, mas não impediu que a marcha saísse imponente.
Eram 16h40 quando o ato começou a seguir pela Paulista, grande, espaçado e salpicado por alguns grupos de tambores. Contudo, quase toda a avenida foi percorrida por uma marcha silenciosa e respeitosa – quase como um luto do povo negro por si mesmo.
Ao chegar à rua Consolação o carro de som já estava posicionado e se iniciaram diversas falas, gritos de ordem, entoação de canções e discursos de resistência de militantes e apoiadores da Marcha.
Em suma, as palavras voltadas ao público pediam pela resistência do povo negro; fim do genocídio de jovens negros e negras; aplicação efetiva da Lei 10.639 (que versa sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na educação pública); discussão profunda sobre o racismo estrutural na sociedade; e menos violência por parte do poder público para com o povo negro, entre outras pontuações.
Até a chegada ao Theatro Municipal, por volta das 19h, o público cantou, tocou tambores, levantou suas faixas e apoiou os discursos ditos. Jovens negros e negras protagonizaram a Marcha, demonstrando um movimento já incorporado por uma juventude resistente e engajada.
Entretanto, grande parte do público chegou ao Theatro Municipal e por ali ficou para as apresentações culturais que destoavam por completo da Marcha – e nem sequer faziam parte do ato. À frente de um balé quase por completo branco, um pequeno grupo de manifestantes percebeu a gravidade da cena: enquanto músicos negros tocavam atrás, crianças brancas dançavam em destaque uma música que inclusive reverenciava a África. Uma cena pouco percebida de apropriação cultural.
O grupo questionou o fato de haver uma apresentação de samba, gênero musical incontestavelmente de origem negra, com a presença majoritária de brancos como dançarinos. Eles cogitaram ocupar o palco para sambar, mas foram impedidos pelos seguranças. Em dado momento, gritaram que o que viam ali era, de fato, apropriação cultural.
E foi assim que a 14ª Marcha da Consciência Negra terminou, no ato de lidar com apresentações culturais não realizadas pelo próprio povo negro.
Diante das lutas destacadas pelo movimento negro na Marcha, é válido destacar as atuais estatísticas da situação de pessoas negras no Brasil. Para isso, foram evidenciados índices alarmantes levantados pelo Atlas da Violência 2017, lançado em junho deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: